Pe. José Carlos dos Santos
Se nos dispmos a fazer uma lista dos desejos humanos, certamente entre eles estará o desejo de viver, e viver uma vida longa e feliz. Há pessoas que se sentem atemorizadas diante do simples pensamento da própria morte. Conheci uma pessoa que se esquivava quando, por alguma razão, se começava a falar sobre a morte. Simplesmente dizia: “Este assunto não me interessa, uma vez que não vou morrer”. A psicanálise afirma a existência do instinto de vida, o que objetivamente significa que está radicado no nosso inconsciente, para além de nossa razão, o desejo de viver, e que inconscientemente adotamos estratégias voltadas para a preservação da vida.
Há casos em que o desejo de continuar vivendo é claramente resultado de forças que se situam além do que é meramente racional. A título de exemplo, conheci um rapaz que morreu de câncer, resultado de longos anos de trabalho nas profundezas de uma mina de ouro. Era a forma de garantir o sustento da família. A morte, consequência de um câncer extremamente agressivo no pulmão, foi lenta e dolorosa, com tumores se espalhando por todo o corpo. No entanto, em cada visita que lhe fazia, por mais que houvesse dor, era muito clara a luta travada contra uma doença implacável, e em nenhum momento houve arrefecimento ou entrega, contra tudo o que parecia razoável. Ainda jovem, como tantos que morrem em condições semelhantes, humanamente falando, a morte venceu a vida, mas não superou o desejo de viver.
Sendo a vida reconhecidamente um bem que se valoriza e se protege, inclusive por meio de estratégias que brotam do inconsciente, o que dizer sobre o suicídio[1]? Embora estejamos atualmente alarmados diante do alto índice de mortes por autoextermínio, o suicídio ocorre desde o início da história. Narrativas de suicídio estão presentes na literatura, como na obra Romeu e Julieta, de Shakespeare. Na Bíblia há, se não me engano, o registro de quatro suicídios, sendo mais conhecidos o suicídio do Rei Saul[2], no Antigo Testamento, e de Judas Iscariotes[3], no Evangelho de Mateus.
Elucidativa, contudo, ainda no contexto bíblico, para a compreensão das razões pelas quais se suicida, é uma agem da vida do profeta Elias (1Rs. 19, 4-5), em que é manifesto o desejo de morrer: “Quanto a ele (Elias), fez pelo deserto a caminhada de um dia e foi sentar-se debaixo de um junípero. Pediu a morte, dizendo: Agora basta, Iaweh! Retira-me a vida, pois não sou melhor que meus pais. Deitou-se e dormiu debaixo do Junípero”.
A consideração dos fatos que estão ligados ao “desejo de morte” de Elias revela que o suicídio não é um ato casual ou aleatório. Quem coloca fim à própria vida não o faz porque simples e livremente escolhe a morte. Segundo especialistas, o suicídio “é uma saída de um problema ou crise que está causando intenso sofrimento” (Kaplan & Sadock, 2007, p. 972). Quem coloca fim à própria vida, portanto, não deseja morrer. O que se busca é colocar fim a um quadro de sofrimento intenso e prolongado, pelo qual a pessoa se sente esmagada. Há, mais ou menos explicitamente, um quadro de desamparo e desesperança, que obscurecem a capacidade de uso da razão. Tudo isso culmina no ato extremo, ilógico ao observador externo, sobretudo quando não se tem o ao que ocorria no íntimo da pessoa que suicida. Quanto ao profeta Elias, como sabemos, ele recebeu o amparo de um anjo, que lhe restabeleceu as forças físicas e psíquicas, de modo que lhe foi possível trilhar ainda um longo caminho.
Os dados estatísticos ligados ao suicídio são preocupantes. A organização mundial de saúde[4], num relatório publicado em 2019, apresenta o seguinte quadro:
Quanto ao Brasil, em que as estatísticas nem sempre são íveis e confiáveis, ao que parece, há aproximadamente 10.000 suicídios por ano, o que resulta em 27 mortes por dia, e mais de um suicídio por hora. Dados específicos relativos ao clero estão sendo levantados pela Igreja. Sabe-se que, entre os anos de 2017 e 2018, houve 20 suicídios de padres, e não poucas foram as notícias veiculadas em tempos de pandemia.
Os fatos revelam, portanto, que o suicídio está ligado ao sofrimento, físico ou psíquico, diante do qual a pessoa se sente desamparada, sem esperança. A visualização da dor física, na maioria das vezes, é bastante clara. Recordo uma antiga conversa com um vizinho, que retornava de uma visita a um amigo idoso e canceroso. Estava impressionado com o que ouviu do amigo, que no meio das dores disse o seguinte: “Sabe de uma coisa, estou numa precisão de morrer. Não aguento mais!”. Numa visita a um doente, perguntei se sentia muitas dores ou se o medicamente era suficiente para produzir alívio. Ele respondeu: “Padre, dói tanto, que tenho vontade de subir pelas paredes”.
Há, diversamente, situações em que o sofrimento é psicológico, portanto, menos visível, mas não menos intenso e desestruturante. Aproximadamente 95% de todas as pessoas que cometem suicídio têm diagnóstico de algum transtorno mental, e os transtornos depressivos estão presentes em 80% dos casos. A depressão, quando aguda e prolongada, provoca um sofrimento que de fato pode tornar-se intolerável, necessitando de urgente cuidado profissional e amparo afetivo. É igualmente significativo o índice de outros tipos de transtorno do humor, como os transtornos de ansiedade e bipolar. A situação se agrava significativamente quando a situação de sofrimento estiver associada à dependência de álcool ou ao uso de drogas, combinação que é muito comum.
Não é difícil intuir, portanto, que há condições que tornam a pessoa mais ou menos exposta ao suicídio. A espiritualidade, uma saudável experiência familiar (matrimônio e filhos), uma carreira profissional consistente, e tudo isso aliado a uma saudável estrutura psíquica indicam baixa probabilidade de suicídio. Nos casos em que estão presentes transtornos mentais, sobretudo a depressão, dependência de álcool e drogas, pouca disponibilidade de vínculos afetivos e desemprego, a ideação e o ato suicida poderão, em algum momento, mostrar-se atrativos. É de se observar ainda que o índice de suicídio em homens é quatro vezes maior que nas mulheres, em todas as idades (Kaplan & Sadock, 2007, p. 972).
Procurando lançar alguma luz sobre o que fazer para prevenir o suicídio, acredito que, inicialmente, seja necessário nos conscientizarmos de que o suicídio é um problema de saúde pública, e que pode ser prevenido. Conhecimento e conscientização são fundamentais, e, neste aspecto, ajuda distinguir o que é fato e o que é ficção. Informação segura, confiável, é a base sobre a qual se deve construir um bom plano de prevenção. A OMS, numa publicação de 2017, apresenta o seguinte quadro[5]:
Objetivamente, o que se pode fazer para prevenir o suicídio (Kaplan & Sadock, 2007, p. 981)?
Desenvolver e implementar programas de prevenção ao suicídio. No início da década ada, a OMS apresentou ao mundo a proposta de se desenvolverem e implementarem programas de prevenção ao suicídio, o que tem trazido significativa redução de óbitos por autoextermínio em muitos países. No Brasil, embora haja legislação a esse respeito, pouco efetivamente tem sido feito. Como afirma a OMS, o suicídio é um problema de saúde pública, sendo urgente que sejam tomadas medidas concretas e objetivas para a prevenção, cujo ponto de partida deverá ser atento e cuidadoso estudo sobre mortes desta natureza, não somente no Brasil, de modo global, mas em cada Estado e em cada cidade dos Estados da federação. Medidas eficazes dependem de informações sobre o número de suicídios, a faixa etária, o perfil psicológico, os métodos mais comumente utilizados etc. A relação estatisticamente representativa entre transtorno mental e suicídio nos leva a concluir que é necessário disponibilizar atendimento de qualidade a pessoas portadoras de transtornos mentais, bem como cuidar de pessoas que estejam experimentando alguma forma de sofrimento físico e psíquico.
Promover esforços para reduzir o o a meios letais e métodos de dano próprio. Um item do programa de prevenção ao suicídio é a pesquisa sobre os métodos ou meios utilizados para cometer suicídio. Os estudos mostram que muitas pessoas cometem suicídio em momento de desespero ou num ato impulsivo, situações em que a impossibilidade de o a determinado meio para tirar a vida poderá oferecer à pessoa o tempo necessário para superar o estado de descontrole emocional. Ao contrário, os dados mostram que a facilidade de o aos meios letais promove significativo aumento no índice de suicídios. A título de exemplo, se, numa determinada cidade, suicídios acontecem com pessoas se jogando de determinado lugar, uma medida de prevenção seria dificultar o o a este lugar.
Promover o o a recursos de saúde física e mental. No Brasil, enquanto é limitado o o à saúde física para grande parte da população, o o à saúde mental é ainda mais e quase inexistente, em muitas localidades. É necessário reafirmar, ainda, que os profissionais de saúde precisam receber acurada preparação para o cuidado e prevenção a uma situação tão complexa e delicada como o suicídio. O profissional precisa ser capacitado para identificar potenciais suicidas e para a correta abordagem e terapia de tais pessoas, além de ser necessário envolver os familiares e demais pessoas com as quais os potenciais suicidas se relacionam.
Desenvolver e promover métodos clínicos e profissionais efetivos. A clínica orientada para a prevenção ao suicídio é outra limitação, nos cursos de medicina, psiquiatria e psicologia, entre outros. O tema é escassamente abordado, de modo que os profissionais da saúde têm que se valer tão somente do bom-senso e criatividade, na maioria das vezes, o que evidentemente não é suficiente.
Promover e apoiar pesquisa sobre o suicídio e prevenção de suicídio. Diferentes e complementares programas de pesquisas são necessários, para subsidiar medidas efetivas de prevenção e terapia ao suicídio. São necessárias pesquisas em âmbito nacional, regional e municipal. O material recolhido em um tipo de pesquisa irá postular a realização de outras pesquisas, mais objetivas e refinadas. Sem acurada visualização da realidade, torna-se impossível a adoção de medidas eficazes em prol da defesa da vida. Como dissemos anteriormente, se nem todos os suicídios podem ser evitados, um programa de prevenção bem desenvolvido e implementado irá, certamente, impedir que centenas de mortes ocorram.
[1]Etimologicamente, a palavra significa “auto assassínio”, e é utilizada para significar uma variedade de situações – e ações – em que a pessoa coloca fim à própria vida.
[2] 1Cr. 10, 4.
[3] Mt. 27, 3-5.
[4] https://www.who.int/news-room/fact-sheets/detail/suicide
[5] https://www.who.int/mental_health/prevention/suicide/en/suicideprev_phc_port.pdf